Material reutilizável emerge como alternativa para purificar o biocombustível.
Felipe FlorestiCarlos Fioravanti, da Revista Pesquisa FAPESPNo início dos anos 2010, pesquisadores da Faculdade de Engenharia Química da Universidade Estadual de Campinas (FEQ-Unicamp) perceberam que, como a proporção de biodiesel misturada ao diesel de origem fóssil iria crescer, seria exigida a adoção de tecnologias para controle do teor de água no combustível, já que o biodiesel tem grande afinidade com a água. Naquela época, a mistura era de 5% de biodiesel e o aumento gradual nos anos seguintes dessa proporção era previsto pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE). O diesel tradicional é usado como combustível em caminhões, ônibus e alguns automóveis. Ocorre que, para os motores funcionarem a contento com a mistura de diesel e biodiesel, seria necessário remover a água presente no biocombustível, fabricado no Brasil principalmente a partir de soja ou gordura animal. Altos teores de água, entre outros problemas, podem causar corrosão em tanques e tubulações, além do entupimento de bicos de injeção, ocasionando problemas nos veículos.
“O primeiro passo foi entender a afinidade de cada um dos combustíveis com a água”, conta o engenheiro químico Leonardo Fregolente, um dos membros da equipe e desde 2017 professor da FEQ-Unicamp. Um dos trabalhos iniciais do grupo, composto também pelas pesquisadoras Maria Regina Wolf Maciel e Patrícia Fregolente, foi publicado em 2012 na Journal of Chemical and Engineering Data. O estudo mostrou que o biodiesel tem capacidade de carregar de 1.500 a 1.980 miligramas (mg) de água por quilograma (kg) de combustível, cerca de 10 a 15 vezes mais do que o diesel fóssil, dependendo da sua temperatura – quanto mais quente, maior a absorção. Além disso, o biodiesel tem alta capacidade de absorver umidade do ar, 6,5 vezes mais do que o diesel.
Segundo o trabalho divulgado na Journal of Chemical and Engineering Data, em 10 dias o combustível fica saturado com a água que tira do ar. No entanto, se durante o processo ou depois a temperatura cair, a capacidade de reter a água diminuirá e parte dela se separará do combustível, acumulando-se no fundo de tanques e outros equipamentos.
No início de junho deste ano, o professor Fregolente não escondeu a satisfação ao mostrar a Pesquisa FAPESP o resultado de mais de uma década de trabalho: tubinhos ou pellets transparentes vazados, com cerca de 5 milímetros (mm) de comprimento, mergulhados em um líquido, um tipo de biodiesel. Tecnicamente conhecidos como recheios, os tubinhos de hidrogel podem ser feitos com um polímero sintético, a poliacrilamida, pertencente a um grupo de compostos químicos que têm como característica a capacidade de atrair as moléculas de água.
Em laboratório, o material passou por uma reação química chamada hidrólise: foi tratado com hidróxido de sódio (NaOH), também conhecido como soda cáustica, e sua capacidade de absorver água livre aumentou quase 27 vezes — de 37 gramas (g) de água para cada g de hidrogel para 987 g de água —, como detalhado em artigo de 2023 na Chemical Engineering Science.
Os recheios de hidrogel poderiam em princípio ser usados para reduzir a umidade durante a produção, no transporte, nos postos de combustível ou diretamente nos tanques dos veículos. “Controlando o teor de água, é possível manter a qualidade da mistura do biodiesel com o diesel por mais tempo”, diz Fregolente, acrescentando que o material pode ser utilizado várias vezes.
A engenheira química Letícia Arthus, que trabalha com o pesquisador, explica que o tipo de hidrogel que conseguem fazer pode ser modulado dependendo da aplicação e da necessidade de remoção de água. “A acrilamida, principal matéria-prima do hidrogel de poliacrilamida, custa R$ 5 por kg, e 1 g de hidrogel absorve até 35 g de água”, diz ela. “Se o hidrogel for produzido a partir do acrilato de sódio, que custa em torno de R$ 400 por kg, sua capacidade de reter água sobe para quase 1 kg de água por grama de hidrogel.” Estudos de custos da inovação, que chegou ao estágio de protótipo, estão em andamento e serão importantes para revelar o impacto de sua adoção sobre o custo final do combustível. O grupo já solicitou o registro de cinco patentes.
Aumento da proporção de biodiesel O contexto nacional favorece inovações desse tipo. O Brasil consome cerca de 700 milhões de litros (L) de biodiesel por mês. A proporção obrigatória de biodiesel no diesel chegou a 14% em março de 2024 e poderá ir a 15% em 2025. O CNPE estima que essa medida deverá evitar a emissão de 5 milhões de toneladas de gás carbônico (CO2) na atmosfera e a importação de R$ 7,2 bilhões em diesel.
Menos poluição, porém, implica mais resíduos nos tanques de armazenamento de biodiesel. Por ser mais densa, a água se deposita no fundo. Na zona limite com o óleo, fungos e bactérias se proliferam e formam uma massa escura e espessa, a chamada borra, que pode entupir tubos, filtros e bicos de injeção de combustível nos motores, além de causar corrosão nos tanques. Em 2021, quando o mínimo exigido por lei era de 12% de biodiesel, 60% dos 710 empresários entrevistados em um levantamento relataram um aumento de problemas mecânicos.
A produção de biodiesel ocorre a partir de uma reação do óleo vegetal com álcool na presença de um catalisador. A reação gera glicerol, matéria-prima de muitos usos. No entanto, as moléculas do biodiesel e outros contaminantes, como o sódio, podem se combinar e formar sabão. O biodiesel é então lavado com água e centrifugado para remoção do catalisador, traços de álcool e glicerol. Uma das formas já usadas industrialmente para retirar a água é aquecer o combustível a vácuo por meio de um processo de destilação, com uso intenso de energia.
A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) determina que o biodiesel saia da usina com no máximo 250 mg de água por kg de combustível. Prevendo a absorção de umidade, a tolerância é de até 350 mg por kg no distribuidor, impondo uma corrida contra o tempo.
“As usinas produzem e enviam para as distribuidoras em poucos dias. As distribuidoras trabalham da mesma forma, com estoques que costumam ser vendidos em menos de um mês”, relata o engenheiro químico Antônio Carlos Ventilii, assessor-técnico da Associação dos Produtores de Biocombustíveis do Brasil (Aprobio). “Remover o excesso de umidade nos tanques das distribuidoras evitaria que o combustível que não esteja dentro do padrão tenha que passar por um processo industrial de secagem, que é custoso e envolve o deslocamento do biocombustível”, diz Ventilii. Segundo ele, uma inovação como o hidrogel só vai se tornar realidade se seu custo for menor que o mero descarte do biodiesel fora das recomendações e o reabastecimento do caminhão de diesel.
“As tecnologias tradicionais de remoção de água, um problema com todos os tipos de combustível, enfrentam limitações técnicas e econômicas”, observa o químico Fauze Ahmad Aouada, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que trabalha com hidrogéis e nanocompósitos híbridos naturais para uso nas áreas agrícolas e da saúde. Segundo ele, uma das principais vantagens do hidrogel da Unicamp é a retirada da água em um tempo relativamente curto com um material de baixo custo e que pode ser reutilizado.
A reportagem acima foi publicada com o título “Biodiesel com menos água” na edição impressa nº 341, de julho de 2024.
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