O Brasil abandona a monarquia e inicia sua história republicana, em 1889, com ânsia de crescer. Não é surpresa que as décadas seguintes são protagonizadas, principalmente, por grandes empreendimentos e seus ousados empreendedores. É nessa época em que o Porto de Santos, concedido aos empresários Eduardo Palassin Guinle e Cândido Gaffrée, começa a se modernizar, ganha os primeiros trechos de cais e se estende para além do Valongo e do Paquetá. É o período que viu nascer as indústrias nacionais, especialmente em São Paulo, que se tornaria o principal parque fabril da nação.
É neste cenário em que quatro empresários percebem que não precisam depender de navios estrangeiros para trazer importações e levar exportações. Pelo contrário, elas podem ser carregadas em cargueiros de bandeira brasileira. Com esta ambição, eles constroem, com capitais e esforços próprios, as maiores companhias privadas de transporte marítimo do país e se tornam, na primeira metade do século passado, os senhores da navegação brasileira.
A história de empreendedorismo de Henrique Lage, Ernesto Pereira Carneiro, Giuseppe Martinelli e Francesco Matarazzo e suas respectivas empresas de navegação - a Companhia Nacional de Navegação Costeira (CNNC), a Companhia Comércio e Navegação (CCN), o Lloyd Nacional e a Sociedade Paulista de Navegação Matarazzo - é parte principal do livro Armação Mercante do Brasil 1890 - 1945 Praticagem de Santos 1890 - 1945. A obra, de 127 páginas, do pesquisador marítimo e ex-colaborador de 'A Tribuna', José Carlos Rossini, será lançada na quinta-feira (24), a partir das 17 horas, no Centro Cultural Forte da Barra, na Ponta da Praia, em Santos.
Paulistano que, nos anos 50, passava as férias escolares em Santos, onde fez amizade com práticos (profissionais que orientam a navegação de navios nas áreas portuárias) e se apaixonou por navios e suas histórias, Rossini explica que narrar a jornada desses “corajosos empreendedores independentes” é tirar “a poeira do tempo de um período importante no nascimento do Brasil do mar”.
“O Brasil republicano queria acabar com a letargia do Império. Então, nessa primeira metade do século 20, temos obras e empreendimentos significativos. E, se antes o país dependia de navios de outras nações, agora, pela primeira vez, ele se lança ao mar com navios seus. É um novo Brasil, que cria o Lloyd Brasileiro e vê, então, o surgimento de companhias de navegação privada”, afirmou o pesquisador.
O Lloyd Brasileiro foi tema dos últimos dois livros publicados por Rossini - Bandeira nos Oceanos - Volume, de 2000, e Bandeira nos Oceanos - Volume II, de 2002. Eles narram a história da empresa estatal, fundada em 1894 e que se tornou a maior companhia de navegação do País, tendo operado mais de 350 navios em seus 103 anos, lembra o escritor.
E foi a partir da coleta de dados para essas obras e outros trabalhos que surgiu o projeto de escrever sobre os feitos desses quatro empresários e suas companhias “Pesquisei muito sobre as companhias de navegação brasileira. E após publicar a história do Lloyd Brasileiro, queria continuar escrevendo sobre a marinha mercante nacional. Então resolvi abordar as maiores empresas privadas, as quatro principais”, explicou.
Rossini destaca que, embora a história do Lloyd tenha sido objeto de várias pesquisas, ele não encontrou qualquer obra sobre as concorrentes privadas da estatal, dando um caráter pioneiro e original a seu mais recente projeto.
Empreendedores
Se o Lloyd Brasileiro foi a maior companhia de navegação da história do país, a Companhia Nacional de Navegação Costeira (ou simplesmente Costeira), a Companhia Comércio e Navegação (CCN), o Lloyd Nacional e a Sociedade Paulista de Navegação Matarazzo foram as maiores empresas privadas do setor, comenta José Carlos Rossini.
“É importante destacar que foram empresas criadas e geridas com recursos privados”, enfatiza o pesquisador. “O LLoyd era uma estatal, uma grande estatal, mas essas quatro só existiram graças aos esforços e às ambições desses quatro homens, todos de grande capacidade empresarial. Sabiam desenvolver seu capital e suas ideias sem precisar da ajuda do Governo”.
Fundada em 1891 pelos irmãos Lage, a Costeira foi a maior companhia de navegação privada do Brasil na época, cita Rossini. Seu principal dirigente foi Henrique Lage. Conhecida por batizar seus navios usando o prefixo Ita (Itaité e Itaimbé, por exemplo), ela chegou a operar mais de 45 embarcações em sua história. Em 1966, elas foram incorporados ao Lloyd Brasileiro.
Considerada a segunda maior companhia desse período, o LLloyd Nacional foi criado no início do século passado pelo empresário ítalo-brasileiro Giuseppe Martinelli - conhecido por sua atuação na construção civil em São Paulo (onde construiu o Edifício Martinelli) e no Rio. A empresa foi fundada quando ele percebeu a demanda pelo transporte marítimo de produtos agrícolas entre o Brasil e a Europa após a Primeira Guerra Mundial. Chegou a operar quase 40 navios e foi vendida em 1922 para a Costeira, de Lage.
A terceira maior companhia de navegação privada do período foi a CCN, fundada em 1905 e que teve como principal executivo Ernesto Pereira Carneiro. Ele ficou à frente da empresa, que contou com quase 30 navios, até 1935. Foi quando, devido a dívidas, a vendeu para Giuseppe Martinelli, que, assim, voltou ao ramo da armação.
A quarta companhia marítima da época foi a Sociedade Paulista de Navegação Matarazzo, aberta em 1911 por Francesco Matarazzo, que chegou a se tornar o homem mais rico do Brasil. A empresa, que teve cerca de 15 navios, foi fundada para trazer trigo argentino para os moinhos do Grupo Matarazzo no país.
Segundo Rossini, a jornada dessas companhias mostra o potencial de negócios do setor e sua importância econômica. “Ao relembrar essas histórias, quero mostrar o quão estratégico o setor de navegação é para o Brasil. É uma área que tem de ser desenvolvida. Hoje, somente em frete marítimo e demurrage (taxa de aluguel de contêineres) pagos a empresas internacionais, saem do Brasil US$ 14 bilhões por ano. Se houvesse uma bandeira nacional mais forte, mais companhias de navegação brasileiras, parte considerável (desses gastos) ficaria no País”.
Praticagem
Além de resgatar a importância das quatro companhias, o livro de Rossini registra a atuação dos práticos de Santos na primeira metade do século 20.
Ao abordar a Praticagem, a obra ganha dois novos objetivos, segundo o autor. Um deles é prestar uma homenagem aos profissionais que “contribuíram de forma significativa para que o Porto de Santos pudesse se tornar, no período de 1890-1963, no maior e mais importante não só do Brasil, mas também da América Latina”, destaca. O outro é relembrar “grandes amigos”, que nos anos 50, apresentaram a um jovem paulistano - que deixava de lado os jogos de futebol para admirar a passagem de navios na Ponta da Praia - o mundo da navegação.