Política Energética

Royalties, poire, queda e reparação

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
26/04/2010 13:00
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O deputado Ibsen Pinheiro (PMDB, RS) serve-se do vinho branco antes de expor sua peculiar análise sobre o que se passa no Congresso Nacional. "É um poder com 20 minorias partidárias, mais bancada da agricultura, bancada do sistema financeiro, bancada dos exportadores, total de umas 40 minorias segmentadas. Nessas condições, a Casa só aprova dois tipos de projetos: os do governo e os irrelevantes. Os do governo, porque ele tem força para bancar. E os irrelevantes, porque não provocam atrito e passam por unanimidade. Aí aparecem os projetos demagógicos, com custo alto para o país. "

Impossível discordar do deputado. Mas essa é a oportunidade para perguntar:

- Entre as propostas demagógicas não se inclui a emenda Ibsen Pinheiro de distribuição dos royalties do petróleo?


A resposta vem rápida.

 

- Fazer a coisa certa também dá voto. Minha emenda distribui pelo país recursos que pertencem a todo o país. E há um traço convincente de que não é demagógica: não sou candidato.

 

Entre uma e outra garfada de talharim com camarão - privilegiando os crustáceos e quase dispensando os carboidratos -, Ibsen declara-se parlamentarista, sem esperança de ver aprovado o regime parlamentar. "Parlamentarismo não tem viabilidade a curto prazo. Todos os candidatos a presidente que ganham eleição já são ou viram presidencialistas. O parlamentarismo, então, fica para o perdedor.


O deputado tentou melhorar o processo e, em 2007, apresentou projeto de voto distrital misto e lista elaborada pelos partidos. A matéria não conseguiu regime de urgência e foi engavetada. "Há parlamentares que são produto do atual sistema. Uma minoria com grande poder de barganha pressiona o governo e não deixa a matéria ir à votação".


 
- Então nunca haverá reforma política?


- Sou otimista, mesmo assim. Esse modelo tem tantas deformações que teremos que descobrir uma solução democrática, pois a alternativa seria a ruptura. Como as comunidades não se suicidam, espero que seja uma solução política e não ditatorial.


Mais magro do que na década de 1980, cabelos mais ralos e brancos, barba aparada com cuidado, Ibsen Valls Pinheiro, 74 anos, volta ao mezanino do Piantella em Brasília. A sala agora se chama Ulysses Guimarães e está acoplada à incrementada adega do restaurante. Ali, em torno de um licor de pera francês ao fim de cada jantar, reunia-se o Clube do Poire, restrito grupo de políticos que conspirou contra a ditadura e, com a Constituição de 1988, restabeleceu a eleição direta do presidente da República.


 
A solidão no dia da própria cassação 


O Piantella conserva a mesa em que Ulysses Guimarães, então presidente do PMDB, e/ou da Câmara e da Constituinte, presidia também um seleto grupo de amigos. Dentre eles, talvez o mais jovem, estava um gaúcho que, até ser cassado em 1994, teve papel de destaque na política brasileira: foi líder do PMDB (1987-1990) e presidente da Câmara no longo e agitado processo de impeachment do então presidente Fernando Collor (1992).

Ibsen escolheu o Piantella para este jantar com o Valor. A mesa é a mesma dos tempos da Constituinte, mas Ibsen deixou vazia a cadeira de Ulysses, que, desde retrato na parede, testemunha o encontro. Outra parede mostra fotos de Ulysses em atividade, e uma terceira, seis conselhos do "Senhor Diretas", selecionados pelo escritor Fernando Morais. "Na política (...), se você não puder fazer um amigo, não faça um inimigo", é o conselho que Ibsen considera dos mais sábios.


 
- Por que não é candidato? Decepção?


- Quando diz que está decepcionado parece que os outros são os ruins e você é o bom. É a versão mais simpática, mas não é meu caso. Gosto da vida parlamentar. O que não quero é ser candidato neste sistema eleitoral de campanha privada, voto uninominal, correr o Estado inteiro com o dinheiro de doadores. Agora, toda contribuição é suspeita e então toda votação também é suspeita. Há uma demonização nisso tudo.


- Você não tem um curral eleitoral?


- Não fui o mais votado em nenhum município do Rio Grande, pois não tive nenhum aparelho partidário. Mas fiquei entre o segundo e o quinto lugares praticamente em todos os municípios. Fui eleito com mais de 76 mil votos, o quinto numa bancada de cinco. Não seria difícil me reeleger. Mas o sistema eleitoral está viciado e esgotado. Não quero mais me submeter a isso.

- Sua primeira eleição para deputado federal foi em 1982. A Câmara piorou?


 
- Pode até ter caído um pouco a qualidade dos trajes. Não há tantas elites na Câmara como antigamente. Então, a qualidade da combinação do terno com a gravata caiu. No plano ético não creio que a Casa piorou. Acho que, apesar de seus defeitos, só a Câmara tem a virtude única da pluralidade, é a representação de todos. Talvez resida aí sua fraqueza. Por ser de todos, não é de ninguém. Então, jogam pedra na Geni. Alguns por ingenuidade, outros por esperteza, fazem uma cobertura negativa da Câmara. É preciso manter essa Casa intimidada, porque ela é perigosa. As transformações que ocorreram nos últimos 150 anos no país aconteceram ali dentro. O último regime de arbítrio morreu ali dentro, quando o plenário derrotou o candidato da ditadura, Paulo Maluf, e elegeu Tancredo Neves.


- Mas a ditadura também começou ali, em 1964, quando Senado e Câmara depuseram o presidente João Goulart.


-Concordo. Mas quero salientar que, desde a Maioridade, em 1831, e a proibição do tráfico de escravos, em 1850, 40 anos antes da Abolição, as grandes transformações passaram pela Câmara. Desde 1824, estava na Constituição que todos eram iguais perante a lei, mas nenhum tribunal considerou, por isso, ilegal a escravidão. Por quê? Por que não são os tribunais que mudam as coisas. Ou é o povo nas ruas, radicalmente. Ou é o povo representado pelo parlamento.

- Por falar em povo nas ruas, convido-o a dar uma caminhada pelas ruas do Rio...

- Olha, tenho mais dificuldade de caminhar no resto do país.

- Por quê?

- Porque sou cumprimentado nas ruas. As pessoas me procuram para dar apoio.

A Câmara que Ibsen enaltece, quase unanimemente - à exceção das bancadas do Rio e do Espírito Santo - aprovou a sua emenda de redistribuição dos royalties do petróleo. Segundo seu correligionário, governador Sérgio Cabral, e o senador Francisco Dornelles (PR), a emenda fere contratos em vigor e retira cerca de R$ 4,5 bilhões dos cofres do Tesouro do Rio. Muito se falou na imprensa contra a emenda e contra seu autor. Mas poucas explicações foram pedidas diretamente a Ibsen Pinheiro.

- Deixa eu contar a história dessa emenda. Meu partido não me indicou para a comissão especial que examinaria os projetos do governo sobre o pré-sal. Os líderes do PMDB, do PT e do governo aparelharam a comissão, indicaram praticamente só representantes do Rio e do Espírito Santo. Propus ao o deputado Humberto Souto, do PPS, membro da comissão, que apresentasse a emenda no nome dele. Aceitou na hora. Mas o relator (Henrique Alves, PMDB, RN) deu parecer contrário, e a emenda foi arquivada na comissão. Decidimos apresentar a emenda em plenário e precisávamos de 101 assinaturas. Conseguimos 258. É injustiça dizer que é emenda Ibsen Pinheiro. A injustiça é com o Humberto Souto, e com os 256 que nos acompanharam.

- Não houve tentativa de negociação?

- Não tivemos espaço para negociar. Isso poderia ocorrer na comissão. Só houve um acordo, e unânime, entre cinco pessoas, os líderes do PMDB, do PT, do governo, a mesa da Câmara e o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha. Mas esqueceram da lição do Garrincha.

- Não conversaram com os russos.

- Exato. Mesmo com as 258 assinaturas iniciais, a mesa não quis receber a emenda e mandou de novo arquivá-la. Recorremos ao plenário mais uma vez. Quando o presidente da mesa disse "os deputados que estão de acordo com o arquivamento permaneçam como se encontram", o plenário todo levantou a mão. Os russos foram 420.

- Sua emenda despreza até os contratos relacionados com o petróleo que está sendo extraído neste momento.

- Isso me lembra a frase do velho senador americano Hiram Johnson: "Nas guerras, a primeira vítima é a verdade". O combate à emenda repouso em duas inverdades. Uma, de que o texto constitucional contempla os Estados confrontantes. O artigo 20 não fala nisso. E, em seu parágrafo único, assegura, "na forma da lei", aos Estados e municípios, e até ao Distrito Federal, a participação nos resultados da exploração.

Ibsen fica mais enfático:

- O mar não integra o território dos Estados confrontantes. Fernando de Noronha, por exemplo, pertence a Pernambuco, mas só o solo da ilha. O mar que a cerca, não. A União é dona de todo o mar territorial, inclusive da bela praia de Ipanema, e, dependendo da distância que está da sua maré mais alta, pode até ser dona do calçadão de Copacabana.

- E os contratos?

- A segunda inverdades está nos contratos. A destinação dos royalties não integra os contratos. As contratadas, Petrobras e as petroleira privadas, recolhem para o governo e o governo redistribuir na forma da lei. Isso é tão constitucional que todas as propostas dão o mesmo tratamento. Isto é uma redefinição da destinação. Todas as propostas, a minha e as demais, colocam isso, inclusive a que o Rio apoiou.

- O Rio recebe R$ 6 bilhões de royalties e, por sua emenda, ficaria com R$ 1,5 bilhão. Esse queda de arrecadação não o comover?

-- Com certeza, é um problema real. Não é o fato de não ter justa causa que esta destinação deva ser simplesmente extinta, porque ela gerou necessidades próprias. Mais uma vez, propus uma negociação, a ocorrer no Senado. Sugeri ao senador Pedro Simon (PMDB-RS) uma nova emenda, que diz "a União compensará, com recursos oriundos de sua parcela em royalties e participação especial, os estados e municípios que sofrerem redução de suas receitas, até que se decomponham mediante o aumento da produção de petróleo..." O Senado tem a bola.

Pedida a sobremesa - sorvete diet para o deputado - surge a ideia de um poire para rebater.

- Faço uma proposta alternativa. Sempre achei que a única coisa ruim do Clube do Poire era o poire. Prefiro um Drambuie.

Proposta aceita, passa-se a falar da política no Rio Grande do Sul. Ali, o PMDB tem candidato a governador, o prefeito de Porto Alegre, José Fogaça. Mas não se definiu sobre candidatura presidencial. "A questão está em quarentena até junho/julho. Antes, vamos articular alianças para o governo."

Ibsen se diz amigo de Dilma Rousseff e de José Serra. Este foi parceiro de articulações durante a Constituinte e, segundo Ibsen, "é confiável, não trai compromissos". Dilma é amiga de longa data. Ela e o seu então marido, Carlos Araújo, foram o primeiro casal a convidar Ibsen para jantar, quando este, cassado, voltou a Porto Alegre. Ibsen identifica em ambos os candidatos uma virtude comum: "Sabem dizer não, e nisso acho até que se sobressaem ante Lula e Aécio". O ex-governador de Minas, aliás, foi cortejado por Ibsen no ano passado. "Tentei trazê-lo para o PMDB. Era o caminho certo para eleger-se presidente já em 2010."

Ibsen estudava no Colégio Estadual Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, quando, aos 14 anos, se filiou à União da Juventude Comunista (UJC). Aos 16, foi trabalhar como redator na "Tribuna Gaúcha", "jornal do partidão fechado por decisão judicial" e que voltou a circular com outro nome. Nascido em São Borja, filho de viúva, Ibsen fez precoce e importante carreira no jornalismo. Companheiros de trabalho testemunham que tinha bom texto e era rápido. Antes dos 25 anos, trabalhou em cinco jornais gaúchos e, no Rio, em cinco jornais e uma revista. Aos 22 anos, era redator interino de uma coluna em "O Jornal", no Rio, quando o filho do poeta maranhense Odylo Costa, filho (membro da Academia Brasileira de Letras, Odylo queria que seu nome fosse grafado assim), de 17 anos, foi morto em um assalto por um garoto de 16. Título da nota de Ibsen: "Duas vítimas".

No dia seguinte, toca o telefone. Ibsen conta: "'Aqui é o Odylo. Quero dizer que você foi quem captou o que eu e minha mulher estamos sentindo. Muito obrigado'. Eu não sabia o que responder. Passou-se um tempo, Odylo foi assumir a direção de 'O Cruzeiro' e me chamou para trabalhar lá. Fui um dos Odylo boys."

 

Na volta a Porto Alegre, terminou o curso de direito, ingressou por concurso no Ministério Público, trabalhou em jornal, TV e rádio, foi colunista esportivo e presidente do Esporte Clube Internacional. A partir de 1977, elegeu-se vereador em Porto Alegre (1977), deputado estadual, e duas vezes deputado federal. Em 1994, acabou cassado pelo plenário da Câmara (296 votos contra 139). Com a matéria de capa "Até tu, Ibsen", a revista "Veja" o acusou de participar do "escândalo dos anões do orçamento". Dez anos depois, o jornalista autor da denúncia retratou-se em reportagem na revista "IstoÉ". Ibsen declarou: "Mau jornalismo se combate com bom jornalismo". Nesse meio tempo, em 2000, houve a reparação na Justiça. O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou ex-officio (por iniciativa do próprio tribunal) o arquivamento definitivo -"perpétuo silêncio" - do processo contra o então ex-deputado, por "falta de justa causa". Novamente elegível, Ibsen foi mais uma vez vereador e agora não quer se reeleger deputado. Viverá em Porto Alegre de duas aposentadorias, a da Câmara e a de promotor, e pensa em voltar ao jornalismo

 

À mesa do Piantella, Ibsen recorda que o que considera injustiça da cassação não é o que mais o incomodava na época. "Como Sócrates, dizia para minha mulher, Laila: 'A injustiça é a parte boa de tudo isso; querias que a acusação fosse justa?' Ter a consciência limpa me permitiu andar no dia seguinte pela Rua da Praia, em Porto Alegre, para reassumir no Ministério Público."

Mas há outra amarga recordação desses tempos. Márcio, filho único de Ibsen e Laila - ela também jornalista, conheceram-se na redação da "Última Hora" de Porto Alegre - era repórter iniciante num jornal carioca, onde um colunista publicou que Ibsen ganhara de um empreiteiro um apartamento de cobertura em Ipanema e nela morava seu filho. No dia seguinte, no mesmo jornal, Danuza Leão publicou o desmentido: Márcio dormia de favor no sofá da sala de um colega jornalista. Não existia cobertura.

O jantar está chegando ao fim e eis que surge o dono do Piantella, Marco Aurélio Costa. Esse mineiro, amigo e admirador de Aécio Neves, traz uma garrafa de poire. Deputado, assessor, repórter e fotógrafo provam o licor de pera, oferta da casa.

Ibsen exagera em sua crítica ao poire do Doutor Ulysses.

 

 

Por Paulo Totti, de Brasília

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