Energia da Cana

Uma planta, uma usina

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
14/05/2010 19:29
Visualizações: 169

Quando Martim Afonso de Souza aportou por aqui trazendo na bagagem mudas de cana-de-açúcar, uma gramínea nativa do Sudeste Asiático, estava lançando as raízes para que o Brasil se transformasse, no futuro, no país do açúcar e do álcool. Desde 2005, somos o maior produtor do mundo de açúcar. A Índia vem em seguida.

 

Hoje, é no álcool produzido a partir da cana - o etanol - que o Brasil aposta para solidificar uma posição inédita no cenário internacional, a de líder na produção de biocombustíveis, e sem competidores à sua altura. O etanol de milho, produzido nos Estados Unidos, consome mais energia para sua produção do que gera e há críticas ao emprego do grão nessa produção, com temores de que provoque alta de preços para rações, por exemplo. O mesmo vale para a produção de etanol a partir de beterraba, especialidade dos europeus.

 

O problema é que esses países detêm recursos e tecnologias de ponta e estão dispostos a entrar na corrida pelo chamado etanol de segunda geração, aquele produzido a partir da quebra da celulose, o açúcar que compõe a parede celular das plantas. Em tese, qualquer planta poderia ser usada para produzir etanol combustível, de galhos caídos numa floresta à grama regularmente cortada dos jardins, passando por algas e palha seca. Por isso, o governo brasileiro, através do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) está investindo pesado para manter a liderança do país no setor, tanto em ciência básica, que produz conhecimento, como em ciência aplicada, que gera inovação e tecnologias.

 


 
"Chegou o momento de conhecer realmente a cana-de-açúcar, entender sua biologia e seus genes, para produzir mais no mesmo espaço, aumentando a produtividade de forma racional e eficiente", diz a pesquisadora Helaine Carrer, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba. "Muito do que ganhamos até agora, em termos de produtividade, se deve a estudos agronômicos, ou seja, qual a quantidade ideal de água, quando acrescentar fertilizante a esta ou aquela variedade desenvolvida ao longo dos anos por melhoramento genético convencional", explica Helaine, que está usando genes da própria cana na tentativa de desenvolver variedades transgênicas.

 

Para entender o desafio que Helaine e outros pesquisadores têm pela frente é bom lembrar das aulas do ensino médio ou do cursinho, em que se aprende que seres humanos são diplóides, isto é, têm dois conjuntos de genomas - um que vem do pai, outro que vem da mãe. A cana tem oito genomas, resultado de milhares de anos de domesticação e cruzamentos, 120 cromossomos (seres humanos têm 46), num total de cerca de 10 bilhões de pares de bases (os A, T, C e G que compõem o DNA ; seres humanos têm 3,2 bilhões).

 


 Um dos objetivos do laboratório de Helaine - que é financiado pelo Programa Fapesp de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (INCT), do MCT - é produzir, por exemplo, uma variedade de cana tolerante à seca, isto é, que não necessite de muita água no inicio de seu desenvolvimento. Segundo a pesquisadora, tudo que se pode obter a partir da transgenia - a introdução de genes de interesse no material genético da planta - também se pode conseguir por meio de cruzamentos convencionais. A diferença está na rapidez com que se obtém a variedade com a característica desejada: o melhoramento convencional leva, em média, 12 anos para produzir um novo cultivar, mas a transgenia acelera o processo de melhoramento em alguns anos. Ou, pelo menos, deveria.

 

Até agora, a cana tem ganho de goleada dos pesquisadores. "Tudo funciona perfeitamente no laboratório e nas mudas, mas, quando elas são plantadas, os transgenes são silenciados", explica Helaine. No jargão dos pesquisadores, isso quer dizer que o efeito desejado - tolerância à seca, maior produção de uma proteína ou outra - simplesmente desaparece. A suspeita de cientistas é que, no campo, aquele mundaréu de genes da cana se recombina de tal forma que o efeito da transgenia some. "Isso só mostra como ainda precisamos avançar na ciência básica. Não dispomos do sequenciamento do genoma completo da cana, temos apenas 290 mil ESTs." Essa é a sigla em inglês para "expressed sequence tags", pequenas sequências de DNA, identificadas através do RNA mensageiro que codificam (o RNAm é aquele que leva a informação do DNA do núcleo para os ribossomos, onde as proteínas são produzidas). "Falta a gente saber o que faz cada gene, como são regulados, como interagem com o ambiente. Ou seja, precisamos de muita ciência básica ainda", diz Helaine.

 

 

Glaucia Souza, coordenadora do Bioen e professora associada do Instituto de Química da USP, concorda e vai além. "O que queremos é desenvolver a chamada 'cana-energia', uma planta que produza mais energia, mas não necessariamente mais açúcar. Ou seja, precisamos transformar uma planta que evoluiu para produzir açúcar em uma planta que funcione como uma usina de energia e aumentar sua produtividade de forma sustentável." De acordo com Glaucia, a produtividade média brasileira hoje está em torno de 80 toneladas por hectare, índice que cai para entre 60 e 65 toneladas no Nordeste e chega a 220 toneladas numa fazenda da Bahia, que utiliza irrigação. Na opinião de Glaucia, com melhoramento genético, essa média pode chegar a 380 toneladas por hectare.

 

Uma das alternativas para esse aumento de produtividade estaria numa modificação genética que aumentasse a fixação de carbono pela planta. Os vegetais captam o carbono da atmosfera - na forma de CO2 - e, por meio da fotossíntese, o transformam em açúcar. "Se a cana 'decide' que vai crescer, ela fixa esse carbono sob a forma de celulose, na parede celular; se ele é fixado no colmo da planta, vira sacarose. O que queremos saber, entre outras coisas, é como a planta toma essa decisão, que genes estão envolvidos nesse processo", diz Glaucia. Na tentativa de compreender o genoma da cana, foi criado um consórcio internacional que reúne cientistas do Brasil, Estados Unidos, Franca, África do Sul e Austrália, com o objetivo de sequenciar os 10 bilhões de pares de bases de DNA de um cultivar. "Este é hoje um dos maiores desafios da genômica", afirma Glaucia, que também coordena o Sucest-FUN, banco de dados que reúne e integra informações geradas por pesquisas nessa área. Todas essas iniciativas têm forte apoio da indústria sucro-alcooleira.

 

A chave dessa transformação se chama biomassa, o conjunto da matéria orgânica produzida pela planta. O etanol que se produz hoje é o chamado de primeira geração, obtido a partir da fermentação do caldo da cana. Obviamente, esse processo incorporou muita tecnologia desde os tempos em que Martim Afonso construiu seu engenho no Brasil. O pote de ouro no fim do arco-íris, hoje, para os pesquisadores não está mais na sacarose da cana, mas na celulose, presente no bagaço e na palha da cana. Na ponta do lápis, aproveita-se hoje para produção de etanol apenas um terço da energia contida na cana, aquela extraída do caldo.

 

De novo, as aulas do cursinho. Ao longo da evolução, as plantas desenvolveram paredes de celulose, um açúcar complexo formado por unidades de glicose, que tem entre suas funções dar sustentação à planta e protegê-la contra as investidas de bactérias e fungos. Em teoria, a quebra (hidrólise) da celulose das paredes celulares da cana permitiria triplicar a produção brasileira, sem que fosse necessário ampliar a área atualmente plantada.

 

"A ideia é que a hidrólise da celulose libera açúcar que, então, poderia ser fermentado e produzir o etanol de segunda geração", diz Glaucia. O trabalho é gigantesco. Tanto que, dos 55 projetos de pesquisa financiados hoje pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), 27 envolvem celulose. "Precisamos entender a parede celular da planta, conhecer a estrutura da celulose, suas propriedades físicas, químicas e biológicas, que podem mudar de planta para planta, de cultivar para cultivar, dependendo da variedade de cana, e existem centenas delas."

 

Entre 80% e 90% de um pé de cana se compõem de água. Descontando-se a água, 70% do que resta é parede celular, ou seja, açúcar: celulose, hemicelulose e pectina. Se, à primeira vista, a ideia dos cientistas parece lógica e viável, uma visão mais detalhada da tarefa que têm pela frente mostra como o caminho é difícil. Eles querem hidrolisar - ou seja, quebrar pela água - uma molécula que é hidrófoba, tem aversão à água. Mais: planejam usar para isso um coquetel de enzimas produzidas por fungos e bactérias, justamente os inimigos naturais contra os quais a parede de celulose evoluiu para defender a planta. Marcos Buckeridge, botânico da USP e diretor científico do Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), ligado ao MCT, explica a trabalheira.

 

 

"A celulose é um polissacarídeo composto por várias moléculas de glicose que se empilham e grudam como velcro, expulsando as moléculas de água. Ela é empacotada em feixes, chamados microfibrilas, com 36 moléculas de celulose, que formam uma espécie de rede em torno da célula e funcionam como as hastes de ferro numa estrutura de concreto. Essa estrutura é 'encapada', como se fosse um fio elétrico, por outro açúcar, a hemicelulose, também composta por moléculas de glicose, mas que se combinam em ângulos diferentes da celulose, fazendo esse composto um pouco menos avesso às moléculas de água. São dois tipos de hemicelulose. A mais interna e mais próxima das microfibrilas tem ligações mais fortes e é mais hidrófoba. Uma dessas hemiceluloses tem ramificações que contêm pentoses, um açúcar. Leveduras detestam pentoses e é isso que faz dessa hemicelulose uma excelente proteção contra fungos." Para completar essa estrutura, hemiceluloses se ligam duas a duas por meio de um ácido, formando a lignina, composto que trava completamente o sistema, produzindo uma rede de tubos de células mortas e tornando todo o sistema completamente hidrófobo.

 

O que se faz hoje para quebrar a molécula de celulose, diz Buckeridge, é, grosso modo, "cozinhar" a fibra, ou seja, o bagaço da cana, fazendo com que amoleça com uma explosão a vapor, permitindo que água e enzimas especificas façam a hidrólise. Os pesquisadores estão em busca de processos e enzimas que quebrem hemicelulose e celulose em açúcares fermentáveis e, portanto, capazes de produzir etanol. Buckeridge quer descobrir os pontos fracos desses açúcares, os pontos fracos da parede celular, para atacá-los com enzimas. "Meu objetivo é implodir essas paredes de forma controlada, da mesma forma que se faz com edifícios. Minha pesquisa é para descobrir em quais pontos devemos colocar as 'bananas de dinamite', no caso, as enzimas."

 

Essas "bananas de dinamite" existem na natureza. Falta identificá-las e descobrir como funcionam. A questão está em selecionar entre mais de 1.500 fungos quais produzem de forma eficiente os açúcares que os cientistas querem. Uma proposta é elaborar uma espécie de ranking dessas enzimas, de acordo com sua eficiência. "Se um desses fungos ou bactérias funcionar bem, podemos fazer um genoma completo", diz Buckeridge. Já existem no mercado "coquetéis" de enzimas capazes de produzir etanol a partir de celulose em laboratório, mas o custo em larga escala ainda é proibitivo. Além disso, falta saber quais coquetéis funcionam em quais variedades de cana.

 

Buckeridge não tem dúvidas de que, no futuro, a biotecnologia vai transformar a cana não apenas numa fábrica de energia, mas numa verdadeira biofábrica, capaz de produzir de forma renovável substitutos para praticamente todos os derivados do refino do petróleo. "Já estamos vendo isso acontecer hoje, com polímeros e proteínas derivadas da cana dando origem a princípios ativos para produção de medicamentos para controle do diabetes, matéria-prima para cosméticos e papel e plástico biodegradável. Não é difícil imaginar um futuro em que tenhamos biorrefinarias capazes de produzir solventes, tintas, fertilizantes, inseticidas e todo tipo de biomateriais a partir de variedades de cana-de-açúcar geneticamente projetadas para esse fim."
 

 

 

 Por Ruth Helena Bellinghini, para o Valor, de São Paulo

Mais Lidas De Hoje
Veja Também
Newsletter TN

Fale Conosco

Utilizamos cookies para garantir que você tenha a melhor experiência em nosso site. Se você continuar a usar este site, assumiremos que você concorda com a nossa política de privacidade, termos de uso e cookies.

19