Valor Econômico
Era uma peça kafkiana de autoritarismo oficial: editada na semana passada, uma resolução do ministério boliviano de Hidrocarbonetos, agora suspensa, acusava a Petrobras de lucros ilegais, "inadequados e irracionais". Apontava, como razão desse suposto abuso da firma brasileira, margens de lucro exageradas, mantidas apesar do aumento dos preços de derivados de petróleo no mercado internacional. O curioso é que a margem de lucro responsável pelos tais ganhos "irracionais" foi fixada por decreto do governo; e só o governo poderia corrigí-la.
Com base nessa ilógica acusação à Petrobras, o ministério ameaçou descontar, do preço a pagar pelas refinarias da empresa na Bolívia, os tais lucros "irracionais". A esse raciocínio incongruente, o ministério somava uma medida de força, ao determinar que as empresas refinadoras teriam de entregar à estatal YPFB sua movimentação financeira - o dinheiro a receber dos clientes e os pagamentos a fazer aos fornecedores. A Petrobras, já decidida a vender as refinarias caso se mantenham as regras delineadas pelo governo boliviano, passou a temer só uma coisa: que, motivado por razões políticas, o governo Lula reagisse de forma branda à ação do Ministério de Hidrocarbonetos.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, porém, agiu como preconizava o sábio Celso Lafer, chanceler no governo Fernando Henrique: suave no modo, duro na ação. A Petrobras foi autorizada a editar nota duríssima, seguida de entrevistas do presidente da empresa, também em tom forte. Enquanto Lula reiterava seu interesse em boas relações com os bolivianos, o ministro de Minas e Energia cancelava a visita à Bolívia, e a remarcava para 9 de outubro, convenientemente após as eleições no Brasil.
Difícil imaginar reação mais eficiente que a tomada pelo governo brasileiro, entendida na Bolívia como uma derrota severa do governo Evo Morales, e responsável pela demissão do mais radical adversário dos interesses brasileiros, o ministro de Hidrocarbonetos, Andres Soliz-Rada (até um dia antes, considerado inamovível do governo, por sua imensa popularidade no país). Até agora, apesar das dúvidas e das resistências reais dentro do governo brasileiro, a Petrobras recebeu apoio para defender seus interesses na Bolívia.
Interesses do Brasil não são idênticos aos da Petrobras
O forte impacto da reação brasileira no cenário boliviano leva muitos analistas a pensar se o governo Evo Morales não estaria, há mais tempo, tratando com maior cuidado das relações com o Brasil, caso a reação do Palácio do Planalto tivesse sido mais dura, ainda em maio, após a edição do decreto de nacionalização do gás e petróleo na Bolívia. Evo Morales não parece compreender as delicadezas da diplomacia; uma demonstração de sua falta de traquejo foi a reação, em Cuba, ao comentar a demissão do fiel auxiliar Soliz-Rada: não falta gente para substituí-lo, bradou o mandatário boliviano. Espera-se que, depois das eleições, a legítima solidariedade com o povo boliviano não distraia o governo da necessária defesa dos interesses do Brasil - que, ressalve-se, não são idênticos aos da Petrobras.
Críticos da política externa chegaram, no fim de semana, a reclamar do governo por não ter chamado a Brasília, desta vez, o embaixador brasileiro em La Paz. Tarefa impossível. Desde a sexta-feira anterior, o embaixador Antonino Mena Gonçalvez saiu da Bolívia para novo posto; e seu substituto, Frederico Araújo, nem arrumou ainda as malas, no Brasil. Quem julga as declarações amenas de Lula pelo seu valor de face não aponta o que faltou desta vez. Quem sabe, esperava-se do brasileiro um tapa na cabeça de Morales, após a suspensão da medida desarrazoada.
Não é só ideologia o que alimenta o cuidado de Lula. Apesar da intempestividade do presidente brasileiro no trato das questões internacionais, pode-se atribuir a ele, nesse caso, boa pitada de "realpolitik". Não interessa agora ao Brasil uma humilhação pública de Morales, ou provocações políticas. Não há, no cenário boliviano, turvado por bloqueios de estradas e paralisações pelos mais diferentes e bizarros motivos, nenhum nome que possa substituí-lo, à direita (desmoralizada) ou à esquerda (incendiária e irracional). E o Brasil, por decisão de governos anteriores, ainda depende bastante do fornecimento de gás boliviano - não só durante o período pré-eleitoral.
As críticas a Lula por suas tentativas de aproximar-se de Morales são enviesadas. Fosse outra a relação entre os dois governos, Soliz-Rada poderia estar ainda à frente do ministério, a Petrobras demonizada e o Brasil, junto aos Estados Unidos, à imprensa e à oposição, transformado por Morales em bode expiatório dos problemas no país andino - causados, em boa parte, pela inépcia do governo local.
É crescente a instabilidade na Bolívia, país com quem o Brasil tem a maior fronteira, preocupações em relação ao narcotráfico, e uma corrente migratória com tendência ascendente. A visão maximalista da cúpula governista provocou lá um impasse perigoso na Assembléia Constituinte, onde se tentou, sem sucesso, atropelar a oposição. Insatisfeitos com a demora em se atender a demandas seculares, os movimentos sociais a todo momento acuam o governo. Facções radicais do MAS (às quais pertencem alguns ministros de Morales) planejam um cerco à cidade de Santa Cruz de la Sierra nesta semana, exatamente em meio a uma importante feira de exportadores - o que pode se transformar em conflito sangrento e simbólico, entre descendentes de indígenas e elementos da elite branca local.
No MAS, quatro correntes disputam o poder, de radicais formados no movimento indígena a moderados ligados a intelectuais sem militância partidária. A queda de Soliz-Rada fortalece o lado moderado, mas gera reações da esquerda e das bases do partido, o que deve azedar a retórica do governo nos próximos dias. A depender das ações do Brasil, as declarações das autoridades locais podem deter-se na retórica para a opinião pública interna, ou podem converter-se em ação, por encurralar um governo já atarantado com desafios para os quais não teve preparo.
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